O vírus causador da Covid-19 pegou de surpresa um mundo globalizado, onde as notícias são divulgadas em milésimos de segundo. A disseminação da doença modificou a forma de agir e pensar de toda a humanidade.

A imprevisibilidade da situação em que os países foram envolvidos trouxe à Justiça questões importantes e que dependem de análises rápidas e firmes, principalmente àquelas que envolvem famílias e crianças. A manutenção da convivência parental durante a pandemia se transformou em um dilema que desencadeou discussões entre doutrinadores e operadores do Direito. As crianças, filhas de pais separados, devem manter a convivência parental com ambos os genitores? Há o risco de que, com o deslocamento, estas crianças se contaminem com o vírus ou sejam seus vetores? Deve-se suspender a convivência sem a análise prévia de cada caso, mantendo-a apenas de forma virtual? Quais as consequências da convivência virtual para os menores? Qual o reflexo da suspensão de convivência em crianças vítimas de perversos atos de alienação parental? São muitas questões a se avaliar.

Uma interpretação equivocada

Não há dúvidas de que a suspensão da convivência parental imotivada, ainda que em tempos de pandemia, se configura prática de ato de alienação parental, não podendo assim ser chancelada pelo Judiciário. A negativa ao exercício da convivência parental presencial é um ato extremo e o magistrado deve optar por este caminho somente em casos onde for comprovada a existência de risco para a criança/adolescente ou para a sociedade. Em 25 de março de 2020, o Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente), emitiu documento com “recomendações para a proteção integral às crianças e adolescentes durante a pandemia da Covid-19”, sendo certo que, dentre elas, apresenta algumas orientações e sugestões no que tange às chamadas “visitas” aos filhos de casais separados ou divorciados, nos seguintes termos[1]: “10. recomenda-se que crianças e adolescentes filhos de casais com guarda compartilhada ou unilateral não tenham sua saúde e a saúde da coletividade submetidas à risco em decorrência do cumprimento de visitas ou período de convivência – previstos no acordo estabelecido entre seus pais ou definido judicialmente.” 

Importante salientar que não há, na orientação mencionada, nada que determine ou sugira a suspensão da convivência presencial, mas, sim, a recomendação expressa de que não se coloque em risco as crianças ou a coletividade. A suspensão da convivência parental, que vem sendo adotada indiscriminadamente com base nessa recomendação, traz em si uma interpretação errônea do texto apresentado pelo órgão. Em uma breve análise da orientação, verifica-se que esta é uma “recomendação” para que “se” e “quando” houver risco comprovado de contaminação da criança com o vírus, por negligência de um dos genitores, caberá ao julgador a decisão que determinará a suspensão e/ou modificação da convivência preestabelecida entre pais e filhos. 

Uma mera “recomendação” não pode ser transformada em regra de afastamento parental e pilar de sustentação de atos de alienação parental, sob pena de correr na contramão dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes. Não devem os Juízos de Família, sem analisar casuisticamente os processos delicados que estão sob os seus cuidados, utilizar-se da orientação acima transcrita como regra, sem considerar o caso concreto. 

A convivência com ambos os genitores deve ser resguardada como forma de garantir o melhor interesse das crianças e adolescentes, cabendo aos genitores zelar pela saúde dos filhos quando em sua companhia. Ou seja, a não ser que haja a comprovação de um risco que a convivência parental representa para a criança ou para a sociedade, deve a convivência ser mantida, considerando ser um direito constitucional de pais e filhos. 

É excepcional a suspensão da convivência física e a determinação de sua realização por meios eletrônicos e virtuais, o que não é nem pode ser a regra geral.

Elo parental mantido

Os vínculos parentais, principalmente com crianças de tenra idade, precisam ser mantidos e alimentados diuturnamente, e não podem ser substituídos por minutos de conversa pela tela de um telefone celular ou um computador, sob a supervisão daquele que não deseja a manutenção dos elos entre o outro genitor e o filho comum, a não ser em casos extremos.

O assunto é novo e desafiador. A cautela, em atenção ao princípio da proteção integral dos menores, deve permear as decisões judiciais, mas o que temos visto é um sem número de determinações de suspensão de convivência parental, sem maiores análises dos casos concretos e sem a detida análise aos malefícios que podem ser causados às crianças e adolescentes.

As recomendações do Conanda são apenas recomendações e não determinações, tendo sido editadas em um momento que não se conhecia a extensão da pandemia e quais os prazos de sua duração. Não há que se falar em suspensão de convivência quando ambos os genitores podem e devem garantir a segurança do filho comum, independentemente do tipo de guarda que seja exercido. E este direito constitucional deve ser resguardado e garantido pela Justiça.

O fato é que todas as questões que envolvem crianças, filhas de pais separados e em processos de litígios familiares, devem ser analisadas casuisticamente, pois cada família é diferente da outra. Neste momento tão delicado, deve haver o equilíbrio nas decisões, sempre lembrando que toda criança é fruto de dois e necessita de ambos para um crescimento saudável.

E MAIS…

Alienação parental

O isolamento social tem sido utilizado por genitores, de forma vil, como justificativa para o afastamento do outro da vida do filho comum. 

O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em algumas decisões proferidas, vem resguardando o melhor interesse das crianças, quando determinam a manutenção da convivência com ambos os genitores: “Assim, tendo em conta a existência de fortes vínculos entre pai e filho e a importância do convívio entre ambos para a manutenção dos laços afetivos, o que contribui para o desenvolvimento saudável da criança e para sua estabilidade emocional e, de outro lado, a ausência de dados concretos que contra indiquem a visita do pai ao filho, como acima mencionado, há que ser indeferida a concessão da tutela provisória de urgência recursal para a suspensão da visitação.”

(Agravo de instrumento n. 0020842-98.2020.8.19.0000 – 24a Câmara Cível – DES. ALCIDES DA FONSECA NETO).

AGRAVO DE INSTRUMENTO. VISITAÇÃO DE MENOR. Pedido de modificação de acordo de visitação estabelecido no divórcio consensual. Suposta relação conflituosa estabelecida entre os genitores. Alegado tumulto à rotina da genitora e dificuldade de cumprimento da quarentena estabelecida em razão da pandemia do Coronavírus. Criança com dois anos de idade. Ausência de prova da situação fática atual e de indícios de conduta incauta do genitor, tendente a potencializar o perigo de contágio. Deslocamento realizado para fins de contato do pai com a menor compreendido no direito à convivência familiar (art. 1.589, do Código Civil). Afastamento completo de circulação de pessoas destinado às pessoas doentes ou suspeitas de contaminação, nos termos do art. 2º, da Lei nº 13.979/20. Manutenção da rotina da criança e dos laços de afeto com o genitor, em prol do bom desenvolvimento emocional do infante. Providência que preserva, simultaneamente, o melhor interesse da menor e a relação entre pai e filho. Recurso desprovido. (agravo de instrumento n. 0021037-83.2020.8.19.0000 – 18ª Câmara Cível – Des. Carlos Eduardo da Fonseca Passos).

O Ministério Público do Rio de Janeiro, atento a esta questão tão sensível, emitiu informação técnica [2] para servir de suporte aos pareceres de seus promotores, que têm como função precípua defender e proteger os interesses das crianças. Neste documento, ressaltou a importância para o desenvolvimento psíquico infantil da convivência parental esclarecendo que os meios eletrônicos não substituem o contato físico.

A ausência parental contínua e desarrazoada traz graves consequências emocionais às crianças, não podendo a mesma ser considerada norma padrão em uma situação excepcional como a que ora se vivencia. A análise casuística das questões envolvidas nos processos de família deve abarcar um exame atento da dinâmica familiar, questionando, principalmente, a existência de provas ou indícios de atos de alienação parental anteriores ao período de quarentena que ora se enfrenta.