O geneticista brasileiro Alysson Muotri, professor titular da faculdade de Medicina e diretor do Programa de Células-Tronco da Universidade da Califórnia em San Diego (EUA) coordena estudos que mostram que a Convid-19 provoca reações no cérebro e testa droga para o tratamento da hepatite C no combate aos sintomas neurológicos.

 

Alysson Muotri, geneticista brasileiro e professor titular da faculdade de Medicina e diretor do Programa de Células-Tronco da Universidade da Califórnia em San Diego, nos Estados Unidos, comenta suas recentes descobertas sobre a forma como o coronavírus afeta o cérebro, gerando alterações neurológicas e psiquiátricas. Estudos recentes mostram que a Covid-19 provoca acidente vascular cerebral isquêmico, trombose de seio venoso, alterações do estado mental, convulsões, psicose, alterações de personalidade, catatonia, depressão, fadiga crônica e estresse pós-traumático, entre outras reações. A sua equipe descobriu que uma droga chamada Sofosbuvir, comumente usada no tratamento da hepatite C, é capaz de reduzir a replicação viral em células nervosas. O remédio esta sendo agora testado clinicamente.

O cientista usou a técnica da reprogramação celular, que é a transformação de um tipo de células chamadas fibroblastos em células semelhantes às embrionárias. No estágio seguinte, elas são convertidas em neurônios. Então Muotri teve a ideia de multiplicar esses neurônios, passando a criar “minicérebros” – os organoides cerebrais. A partir da reprogramação de células doentes é possível investigar as alterações presentes nesta célula desde a sua gênese.

Os minicérebros são modelos preciosos criados em laboratório para testar medicamentos para quadros neurológicos e psiquiátricos. Até então isso era inviável devido à dificuldade de se conseguir biópsias do sistema nervoso central, já que o procedimento é invasivo. Há quem diga que a técnica poderá ser usada como ferramenta de diagnóstico, antecipando o aparecimento de sintomas e começando tratamento mais cedo. Outras estratégias são os modelos animais e os modelos matemáticos e computacionais, que simulam o funcionamento do sistema nervoso, além dos exames de neuroimagem.

A reprogramação foi anunciada pela primeira vez pelo pesquisador japonês Shynia Yamanaka, o que lhe rendeu o Nobel de Medicina em 2012. Assim foram geradas as primeiras células-tronco pluripontentes induzidas (IPS, em inglês). Elas carregam a mesmas informações genéticas das células doadoras e têm a capacidade de dar origem a todos os tecidos do corpo, inclusive neurônios.

Outro estudo realizado por Muotri gerou neurônios de pacientes do espectro autista e permitiu sua reversão ao estado normal. O espectro autista inclui várias síndromes, cujos traços em comum são o atraso do desenvolvimento da linguagem, dificuldade em manter relações sócias, comportamento estereotipado e foco de interesse muito restrito. No passado, acreditava-se que o autismo era resultado de uma experiência negativa vivida com a mãe. Mas o pesquisador mostrou que os fatores ambientais são pouco significativos. 

A equipe de Muotri também usou a mesma técnica para reconstruir um organoide molecular de sequências de DNA de homens neandertais isoladas por arqueólogos e geneticistas. Os cientistas especulam que os neandertais tinham sérios déficits cognitivos e sociais, o que poderia ter contribuído para sua extinção. Além disso, as alterações moleculares encontradas nos minicérebros de laboratório dos neandertais são semelhantes àquelas encontradas nos mesmos órgãos de algumas crianças com espectro autista.

Muotri é autor do livro “Simples Assim: Células-Tronco“, em coautoria com o médico Adelson Alves, pela editora Atheneu, com capa ilustrada pelo cartunista Ziraldo.

Como os minicérebros podem ajudar no estudo dos sintomas neurológicos do coronavírus?

Esses organoides cerebrais permitem a execução de uma série de experimentos que são inviáveis de se fazer no cérebro humano, tanto por uma questão ética, quanto por uma questão de acessibilidade. Essa flexibilidade experimental permite que se possa questionar os mecanismos que o vírus usa para atingir o cérebro e também testar formas de inativá-lo.

Além dos pulmões, seus estudos mostram efeitos do coronavírus no cérebro. A doença reduzia as sinapses corticais. Como foi feita a pesquisa?

Infectamos os organoides cerebrais com o coronavírus e, depois de 48 horas, fizemos uma análise detalhada do impacto do vírus nesse tecido neural. Já tínhamos experiência através de nossos trabalhos anteriores com o vírus da Zika. Nosso grupo mostrou como o Zika causa microcefalia, em 2016. Observamos uma série de mortes celulares, principalmente em neurônios. Neurônios que sobreviveram não estavam ilesos, mas apresentaram uma redução significativa no número de sinapses.

A considerável redução de sinapses é reversível?  

Não sabemos, estamos investigando isso no momento.

Já foi descoberto um medicamento que bloqueia a ação do vírus no corpo e no cérebro?

 Sim, usamos nosso modelo para avaliar a eficácia do Sofosbuvir, um remédio que se mostrou capaz de reduzir a replicação viral em células nervosas. O medicamento está sendo agora testado clinicamente.

Um estudo em camundongos mostrou que, quando o vírus infecta o cérebro, a mortalidade é maior…Por que isso acontece?

Ainda é um mistério. Muito provavelmente o vírus afeta a comunicação entre o cérebro e outros órgãos vitais no organismo.

Os cientistas demonstraram que o Sars-Cov-2 força os neurônios a se multiplicar, mas não os destrói. Essa replicação inibe o oxigênio fornecido às células adjacentes, fazendo com que elas morram…

Isso é ainda uma hipótese. Existem outras, como, por exemplo, uma resposta inflamatória vindo das células da glia [tipos celulares presentes no sistema nervoso central que não geram impulsos nervosos e são capazes de se multiplicar.

Qual a relação do Sars-Cov-2 e a proteína ACE2, proteína da superfície celular?

A ACE2 é um dos receptores do vírus. Mostramos que esses receptores também se encontram ativos no cérebro, justificando a infecção em neurônios.


Um estudo descreveu o caso de um paciente com deterioração da mielina, uma camada gordurosa que protege os neurônios…

Existem diversos estudos de caso. Ainda não temos uma visão completa do que acontece no cérebro após a infecção. Pode-se levar anos para caracterizar esse tipo de dano cerebral. Mas estamos investigando.

O Sr. tem se dedicado ao estudo das células IPS e o autismo. Quais as suas recentes descobertas nesse campo?

Estamos usando organoides cerebrais derivados de autistas para testar formas de reversão da condição e neuroprotecão. Atualmente estamos trabalhando com terapias genéticas e farmacológicas. Do ponto de vista do mecanismo, conseguimos entender melhor a relação com a inflamação, abrindo novas oportunidades de tratamento. Infelizmente, todo esse trabalho foi desacelerado por causa da Covid19, mas estamos lentamente retomando os estudos.