Há imensa falta de recursos para manutenção da saúde mental de mulheres que sofrem com a violência doméstica física e/ou psicológica, dificultando os recomeços e a reinserção social para que novas histórias possam ser contadas.
“Não se nasce mulher, torna-se mulher.” Entre todas as frases de Simone de Beauvoir ditas por Fernanda Montenegro em seu monólogo no Ibirapuera, essa fala foi a que mais me afetou naquela plateia lotada onde estavam eu, minha filha e mais de 15 mil pessoas.
Sim, Simone tinha razão e quando penso no tamanho do impacto dessa frase na vida das mulheres que, além do gênero, são sobreviventes de violência doméstica, me vem à mente uma avalanche de preocupações, questionamentos e urgências.
Longa caminhada
É fato que houve avanço de políticas de proteção para mulheres, mas ainda há muito o que se fazer.
Historicamente somos tidas como loucas, descontroladas, afetadas por nossos hormônios sejam da TPM, gravidez ou menopausa. Nossa palavra tem menor valia, nosso talento sempre precisa vencer o julgamento de ter sido alcançado por conta da nossa aparência física: “Deve ter dormido com o chefe, por isso foi promovida”.
E não posso deixar de citar a maternidade, que da forma como nos foi ensinada — sublime e romântica —, na maioria das vezes, nos isola e nos esgota.
Violência em muitas esferas
Agora, imagina isso aliado à situação de violência doméstica? Medo de não ter nossa palavra acreditada, insegurança financeira, receio de perder a guarda dos filhos, vergonha do julgamento social.
Esses são alguns dos entraves que dificultam a realização de uma denúncia e, quando vencidos, encontram-se com a falta de acolhimento seguro do judiciário e com a morosidade da justiça.
Nascer e tornar-se mulher nesse contexto de violência continuada torna impossível a manutenção de saúde mental para todas nós.
Sintomas diversos
Durante a exposição ao ciclo de violência, mulheres apresentam diminuição da capacidade de tomar decisões, baixa concentração, insônia, além de transtornos ansiosos e depressão.
A longo prazo, a violência é mais facilmente normalizada e alimenta a baixa estima, principalmente se uma mulher cresceu em uma família com padrões rígidos de educação e tabus religiosos.
Elevado consumo de medicações psiquiátricas prescritas por clínicos ou ginecologistas — afinal quem vai ao psiquiatra é doido — com o indevido diagnóstico de estresse é, infelizmente, muito comum.
Denúncia feita. E agora?
O isolamento social imposto pelo abusador permanece nos primeiros meses após a separação e muitas mulheres demoram para tomar coragem de contar suas histórias.
Vergonha e medo de julgamento perpetuam a solidão o que acaba deixando essas mulheres ainda mais doentes.
Após romper um relacionamento abusivo, uma mulher pode ainda sofrer por Estresse Pós-Traumático e Síndrome do Pânico, além de desenvolver doenças auto-imunes como a Fibromialgia, Tireoidite de Hashimoto entre outras tantas sabidamente relacionadas às questões emocionais.
Iniciativas públicas e sociais
Então o que fazer? É quase um se correr o bicho pega, se ficar o bicho come?
Acredito que um bom caminho seria a realização não só de campanhas que incentivem as mulheres a denunciar, como também iniciativas públicas e sociais de esclarecimento sobre direitos jurídicos, além de possibilidades de apoio financeiro e psicológico nos meios de comunicação social em massa.
Enfim, eu sinto que, hoje, o que se faz sobre violência doméstica no Brasil é quase que uma espécie de Lei Áurea.
Libertamos mulheres por meio da Lei Maria da Penha, mas há imensa falta de recursos para manutenção da saúde mental dessas mulheres, dificultando os recomeços e a reinserção social para que novas histórias possam ser contadas.
Busca por ajuda especializada
Acompanhamento psicoterapêutico é imprescindível e salva muitas mulheres. Falar sobre a importância de seguimento psicológico/psiquiátrico e deixar claro que a mente carece de tratamento especializado bem como o coração, a pele ou os rins, pode ser uma iniciativa a ser adotada pelo Conselho Federal de Medicina e pelo Ministério da Saúde.
Além de trazer qualidade de vida para mulheres vítimas de violência doméstica, essas ações contribuiriam para o movimento de luta antimanicomial. *