É possível cheirar, ver, medir, pesar, ouvir a ansiedade? Dá para fotografar a inveja? Radiografar o amor, o ciúme, a inveja, o ódio, a rivalidade? Na prática o que podemos observar são condutas, atitudes, falas, reações químicas e fisiológicas das quais um bom observador pode inferir esses sentimentos, essas emoções.

Eles, propriamente, não estão no campo observável sensorialmente. Não há como registrá-los por meio de equipamentos. Mesmo as pesquisas neurofisiológicas mais avançadas com tomografias e ressonâncias magnéticas não conseguem, apesar das tentativas, transpor aquilo que o equipamento registra para a emoção efetivamente vivida.

Afirmações nesse sentido permanecem, querendo ou não, inferências. Pode-se tentar negar a existência desse mundo subjetivo e “invisível” ou desqualificar sua importância.

Alguém, contudo, pode sinceramente negar a existência dessas coisas não palpáveis como ansiedade, inveja, amor, ciúme, ódio, etc.? É possível igualmente negar as consequências dessas subjetividades nas histórias de vida pessoais ou ainda de grupos sociais ou nações inteiras?

O que faz com que pessoas sigam cegamente a suposta autoridade autoatribuída por um indivíduo desconsiderando tudo aquilo que a experiência possa deixar escancarado diante de seus olhos ou do conjunto de seus sentidos?

Experiência subjetiva

Na maioria das vezes as pessoas que assim agem nem percebem que se comportam dessa maneira e muito menos aquilo que nas suas subjetividades leva a que operem dessa forma.

Qualquer um de nós tem a experiência de tirar fotografias de viagens e percebe ao olhá-las que elas não refletem a experiência efetivamente vivida no momento em que foram obtidas.

A suposta objetividade da fotografia ou mesmo dos mais sofisticados exames laboratoriais se evidencia como uma falácia ao constatarmos que o que é registrado depende do equipamento utilizado, do ângulo escolhido pelo fotógrafo ou do examinador, dos filtros usados, daquilo que o equipamento é capaz de registrar ou não.

Muitos músicos se recusaram a usar o equipamento digital quando esse surgiu para gravar sinfonias ou congêneres por não reconhecerem nos sons reproduzidos aquilo que produziam ao vivo ou nos equipamentos analógicos com que estavam habituados.

Análise de exames sofisticados

Sofisticados exames laboratoriais não impedem que diferentes especialistas os interpretem de modos discrepantes e proponham abordagens diversas. Lembro-me do caso de uma pessoa conhecida que levou seu bebê que apresentava retardo no desenvolvimento motor a um grande neurologista.

Ele pediu exames sem olhar o bebê. Ao ver os exames disse que ela desistisse do filho porque ele nunca passaria de um vegetal. Aflita, conseguiu de outro médico a indicação de outro grande neurologista.

Ao ver os exames esse segundo também disse que pelo que lá estava registrado seria esse o prognóstico, porém fez questão de examinar o bebê.

Depois de ver a criança seu prognóstico foi outro: o bebê teria sempre um certo nível discreto de limitação muscular, mas com fisioterapia e outros cuidados ele se desenvolveria de forma bastante suficiente. O prognosticado “vegetal” é hoje, ele mesmo, um renomado médico.

A crença na verdade objetiva daquilo que é mensurado esquece que os equipamentos são produzidos conforme as capacidades de observação humana, o que é muito diverso de a realidade se enquadrar dentro do espectro da percepção humana, por mais magnificada que possa ser.

A observação com os sentidos é fundamental e imprescindível, mas está longe de ser algo a que possa se reduzir a realidade e sua interpretação está sempre sujeita à subjetividade humana.

Pensamento versus existência

Há não muito tempo vi no Planetário do Museu Frost de Miami um impressionante documentário sobre matéria escura. Algo que ninguém sabe do que se trata e que se supõe a existência por conta de seus efeitos gravitacionais nos movimentos das galáxias, que nos permearia o tempo todo, e que comporia a maior parte do que existe no universo.

A despeito do desenvolvimento de imensos aceleradores de partículas e outros equipamentos tecnológicos, o que ela é continua uma incógnita.

Wilfred Bion, um dos mais notáveis psicanalistas dos últimos tempos, observou que a característica mais marcante do pensamento de indivíduos psicóticos é a indiferenciação entre aquilo que pensam e aquilo que existe. O que pensam é o que existe.

Ações e pensamentos não se distinguem. O que ele pensar é o que existe – é A Verdade. Se não pensar, não pode existir ou precisa ser destruído para que a realidade “se iguale” e se submeta às leis do seu pensamento. É necessário ficar evidente que as leis da física são tentativas de se aproximar de modo que seria útil e prático, do que seria o funcionamento do universo, contudo, elas são construtos humanos que são descartados à medida que os fatos observados e os experimentos revelem suas incongruências ou equívocos.

A realidade não obedece às leis da física criadas por humanos. Como mencionei acima, elas são tentativas de se aproximar de forma prática daquilo que seria esta realidade, sem jamais alcançá-la. Quando se confunde leis da ciência com leis da natureza o ser humano estaria se confundindo com uma divindade.

Em um pensamento realmente científico a dúvida é a pedra angular. Teorias sempre estão para ser revisadas e até mesmo descartadas à luz da experiência, conforme explicita Karl Popper no seu livro Conjecturas e Refutações.

Onde entra a psicanálise?

Onde entra a psicanálise nisso tudo o que estou escrevendo? Entra na questão das subjetividades às quais a maioria de nós está submetido e não se dá conta.

O que leva um grande nome da neurologia usar somente da leitura de exames laboratoriais sofisticados e não se dispor sequer a examinar o paciente porque para ele a verdade estaria no registro do equipamento? O que o impede de ter dúvida? O que faz com que acredite que sua ideia e uma verdade inquestionável sejam equivalentes? Qual a diferença desse “cientista” e de um fundamentalista religioso? Há alguma?

Qual a condição subjetiva do outro neurologista que se permitiu continuar investigando a despeito da suposta verdade objetiva dos exames? Como destaquei acima, essas questões subjetivas inconscientes podem implicar em resultados dramáticos.

Freud foi um extraordinário neurologista em sua época antes de se aventurar na psicanálise. Foi reconhecido por suas pesquisas nesse campo. Todavia, no seu trabalho clínico observou a existência de uma realidade psíquica não observável sensorialmente, mas inferível por meio de observações sensoriais. Deu-se conta de dramas que se passavam nas mentes de seus pacientes dos quais eles não tinham consciência. Essa ideia não é apenas uma crença dos psicanalistas.

Ela é algo constatável na EXPERIÊNCIA clínica assim como o que se observa no alívio e ampliação da capacidade para pensar dos pacientes quando percebem que tipo de fantasias inconscientes os aprisionava e sobre as quais não sabiam de como elas determinavam suas condutas, muitas vezes percebidas por eles próprios como descabidas ou assustadoras, porém impossíveis de serem evitadas.

Para se chegar a essas fantasias inconscientes é necessário um trabalho longo e árduo, pois em geral a constatação desses “pensamentos”, sentimentos, desejos, ou ideias que não são conscientes pelos pacientes costuma ser bastante perturbadora e dolorosa.

Constante desenvolvimento

O filósofo Gaston Bachelard dizia que quase sistematicamente um grande inovador e disruptor de paradigmas no campo científico costuma se consolidar como um ferrenho defensor autoritário de suas ideias que foram a seu tempo revolucionárias e afronta ao pensamento estabelecido. Uma vez “entronado” torna-se obstáculo a novas percepções que ponham em risco suas ideias transformadas em dogmas.  

A psicanálise, como todas as ciências sociais, não pode usar dos mesmos métodos de investigação que tem sua utilidade no campo do inanimado, pois lida com aquilo que é vivo e que tem subjetividade, não é uma máquina.

Ela própria está em constante desenvolvimento e, como em qualquer outra área da ciência, os psicanalistas podem cair em modos dogmáticos de funcionamento em que teorias deixam de ser tentativas de aproximação do que seria a realidade última – inalcançável para os humanos, como já propunha Kant, para se tornarem equivalentes a essas verdades.

Nesse quesito, a psicanálise longa, intensa e profunda do próprio analista é fundamental para que ele venha a se dar conta de suas próprias fantasias inconscientes que possam interferir nas suas observações e na expansão de sua capacidade de pensar, sempre na direção do que ainda não se sabe e não na reiteração do suposto saber.

Dessa maneira, o desenvolvimento da psicanálise também foi fundamental para desvelar os problemas na atividade de investigar e pensar cientificamente em todas as áreas, e não somente na dela.

É decisivo para tal, que o psicanalista seja alguém que tenha uma formação consistente e rigorosa. Há uma profusão de “formações” de psicanalistas pululando nas mídias o que pode, com justeza, levar a uma crítica e uma desqualificação da profissão de psicanalista, visto que exercida por pessoas que se apropriam dessa denominação sem terem feito o trajeto necessário para essa qualificação.

E MAIS…

Intensas avaliações e qualificações exigidas

As sociedades de psicanálise associadas à International Psychonnalytical Association (IPA), que foi fundada por Freud e com sede em Londres, têm por meta o desenvolvimento dessa ciência humana de modo rigoroso e sistemático por meio de formações que costumam ser muito longas e exigentes.

Dificilmente um pretendente, uma vez admitido para iniciar sua formação na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo consegue se qualificar com menos de dez anos na formação.

Para alguém se tornar um professor dessa instituição e também um analista didata da mesma (que analisa os pretendentes a serem analistas) é provável que se passem mais muitos anos nos quais se submete a intensas avaliações e apresentações de trabalhos científicos que precisam do reconhecimento daqueles anteriormente qualificados.