“Meu filho não aprende porque é preguiçoso?” – Essa frase é recorrente em muitos lares e salas de atendimento psicopedagógico: um julgamento aparentemente simples, mas carregado de implicações psíquicas profundas.
Chamar uma criança de “preguiçosa” não é apenas um erro de atribuição causal; trata-se de um ato que cristaliza no sujeito um significante, um rótulo, que interfere diretamente na construção de sua identidade e na formação de suas funções cognitivas e afetivas.
Conflitos não elaborados
Segundo a psicanálise freudiana, os sintomas na infância devem ser lidos como formações do inconsciente que, frequentemente, respondem a uma demanda do Outro — ou seja, da figura parental e do ambiente simbólico que a criança habita.
O que se chama vulgarmente de “preguiça” pode esconder conflitos não elaborados, angústias silenciosas ou mesmo identificações inconscientes com ideais parentais que inviabilizam a autonomia do sujeito infantil.
Freud (1905), em Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, já apontava que o desenvolvimento da criança se dá por meio de um complexo entrelaçamento entre pulsões, repressões e formações de compromisso.
A desmotivação escolar pode ser lida, nesse contexto, como um mecanismo de resistência, uma recusa simbólica, por vezes inconsciente, a se submeter a um ideal imposto pela autoridade parental ou escolar. A criança, então, responde com apatia, mas o que está em jogo é muito mais do que vontade: trata-se de um embate subjetivo.
Perspectiva psicopedagógica
Na perspectiva psicopedagógica, apoiada em autores como Sara Paín e Jorge Visca, o sintoma de não aprender é compreendido como um ato multideterminado.
Quando a família nomeia o filho como “preguiçoso”, não apenas impede que ele compreenda suas próprias dificuldades, como também fixa um lugar no sistema familiar, dificultando sua mobilidade psíquica e cognitiva. Esse rótulo, que assume a forma de uma “profecia autocumprida”, impede que a criança construa uma narrativa alternativa sobre si mesma.
Jung, ao falar dos complexos familiares, sugere que a criança pode introjetar figuras parentais críticas ou depreciativas, formando núcleos inconscientes que sabotarão sua autoestima e capacidade de agir. Um “complexo de inferioridade” pode ser alimentado justamente por esses rótulos, especialmente quando ditos de forma repetitiva e afetivamente carregada. Em sua linguagem simbólica, a criança não apenas ouve que é preguiçosa — ela se torna a própria encarnação desse afeto negativo.
Teoria lacaniana
Na teoria lacaniana, a função paterna é essencial para organizar o desejo da criança, separando-a da onipotência do desejo materno. Quando os pais rotulam, especialmente com discursos pejorativos, acabam por falhar na tarefa de nomear positivamente o sujeito.
A palavra do Outro tem função estruturante no inconsciente. Dizer “você é preguiçoso” é não apenas um juízo de valor: é uma inscrição simbólica que se transforma em núcleo identificatório.
O desejo dos pais — consciente ou não — de que o filho se destaque, seja “brilhante”, pode gerar uma tensão psíquica insuportável. A criança, então, responde com uma recusa, uma paralisação que pode ser erroneamente lida como desinteresse ou indolência. No entanto, trata-se de uma defesa psíquica: recuar é mais suportável do que frustrar o desejo do Outro ou se submeter a ele sem reservas.
Plasticidade sináptica
A neurociência, por sua vez, corrobora a tese de que o aprendizado é um processo altamente sensível ao contexto afetivo. O córtex pré-frontal — responsável pelas funções executivas, como planejamento, motivação e autorregulação — é altamente influenciado pelos afetos. Situações de estresse crônico, desvalorização e insegurança emocional comprometem a plasticidade sináptica, dificultando a consolidação de novos aprendizados.
Pesquisas com neuroimagem demonstram que crianças expostas a ambientes hostis ou emocionalmente negligentes apresentam alterações significativas na atividade do hipocampo e da amígdala, áreas relacionadas à memória e ao processamento emocional. Assim, rotular uma criança de maneira depreciativa compromete não apenas sua autoestima, mas literalmente a arquitetura de seu cérebro em desenvolvimento.
É papel do psicopedagogo não apenas intervir na dificuldade específica da criança, mas também traduzir ao grupo familiar a importância do discurso que sustenta o sujeito. A escuta clínica deve deslocar o foco da queixa (“ele não aprende”) para o sintoma como linguagem (“o que essa recusa quer dizer?”). A criança, ao “não aprender”, está comunicando algo que ainda não pode ser dito em palavras. Cabe ao terapeuta criar um espaço de tradução simbólica dessa fala silenciada.
Alerta aos sintomas
Por isso, mais do que combater a “preguiça”, é necessário desmontar o significante que sustenta essa representação. Em muitos casos, o sintoma começa a se dissolver quando a família consegue ressignificar suas próprias expectativas e acolher o sujeito da criança em sua singularidade — com seus tempos, seus modos de simbolizar e seus impasses estruturais.
Dizer que uma criança não aprende porque é preguiçosa é, no mínimo, uma leitura reducionista, que ignora a complexidade dos processos psíquicos, afetivos e neurológicos envolvidos no ato de aprender. O rótulo parental, ao invés de ajudar, cristaliza um lugar patológico que impede o movimento do desejo e a emergência do sujeito.
A escuta psicanalítica, aliada à atuação psicopedagógica e ao olhar atento da neurociência, permite abrir fissuras nesse discurso hegemônico, devolvendo à criança a possibilidade de se reinventar, de criar novos significados para si e de, enfim, aprender — não para agradar ao Outro, mas como expressão de seu próprio desejo.
REFERÊNCIAS
DAMÁSIO, Antonio R. O erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
FREUD, Sigmund. O Eu e o Isso (1923). In: FREUD, S. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). In: FREUD, S. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
GERHARDT, Tatiana E.; SILVEIRA, Denise T. Métodos de pesquisa. 1. ed. Porto Alegre: UFRGS, 2009.
JUNG, Carl Gustav. A dinâmica do inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2011.
LACAN, Jacques. Os escritos técnicos de Freud. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 267-320.
PAÍN, Sara. Subjetividade e aprendizagem. Porto Alegre: Artmed, 1992.
VISCA, Jorge. Epistemologia convergente e diagnóstico psicopedagógico. Porto Alegre: Artmed, 1991.
- Autoria em parceria com: Sarah Alves Munhoz – Psicanalista Clínica e Infantil. Especialista em Análise e Interpretação do Desenho – Testes Projetivos e Sandplay Therapy – Psicologia Analítica. Cursos de aprofundamento nas áreas da Psicologia aplicada à teoria psicanalítica. Psicopedagoga Clínica e Institucional. Especialista em Neuropsicologia, transtornos depressivos e ansiosos e PNL. Co-Autora do livro “Análise e Interpretação dos Desenhos – Utilização dos testes projetivos nas clínicas psicanalítica e psicopedagógica” (Wak Editora).