O burnout, em sua aparência clínica, é frequentemente descrito como uma síndrome ocupacional marcada por exaustão emocional, despersonalização e sensação de ineficácia.
No entanto, essa descrição não dá conta da complexidade psíquica que o sustenta, especialmente entre os profissionais cuja função central é cuidar do outro – professores, médicos, psicólogos e psicanalistas.
A psicanálise permite ir além da superfície sintomática e compreender esse esgotamento como efeito de um desejo inconsciente de se tornar objeto para o outro, esvaziando-se de si mesmo.
Guardião moral
Sigmund Freud já advertia, em O Eu e o Isso (1923), que o eu encontra-se sob constante pressão do supereu, funcionando como um “guardião moral” que impõe um ideal inatingível de perfeição.
Nas palavras de Freud: “O supereu é o herdeiro do complexo de Édipo e representa as exigências dos pais, da tradição e dos ideais sociais; exige do eu não apenas moralidade, mas também uma perfeição insuportável” (Freud, 1923/1976, p. 36).
No caso dos profissionais do cuidado, esse ideal superegoico se expressa por meio de uma ética de sacrifício, que os leva a ocupar um lugar de onipotência redentora – como se fossem responsáveis por aliviar toda a dor do outro.
Quando essa identificação é levada ao extremo, há o risco de se dissolverem subjetivamente, funcionando como “objetos” do desejo alheio.
Jacques Lacan nos ajuda a entender essa dinâmica a partir do conceito de “objeto a”.
Trata-se do objeto perdido do desejo, que o sujeito busca incessantemente no Outro. Ao se colocarem neste lugar, os profissionais passam a ser investidos de uma função imaginária que os aprisiona. Diz Lacan: “O desejo do homem é o desejo do Outro” (Lacan, O Seminário, Livro 11, 1964/1985, p. 235).
Arquétipo do curador ferido
Essa frase nos alerta para o risco de o sujeito do cuidado não mais distinguir entre seu desejo e o desejo do paciente, do aluno, do analisando.
Jung, por sua vez, traz a ideia do “arquétipo do curador ferido”, figura que simboliza o terapeuta (ou professor, ou médico) que cura o outro a partir da própria dor, mas que, quando possuído por essa imagem, pode sucumbir à sombra do esgotamento.
Jung alerta que: “Ninguém pode ter uma compreensão real do outro sem antes ter penetrado suficientemente em si mesmo” (Jung, Memórias, Sonhos, Reflexões, 1961, p. 158).
A hiperidentificação com o sofrimento alheio pode ser compreendida como uma forma inconsciente de fusão narcísica, onde o limite entre sujeito e objeto se esgarça.
Cristophe Dejours, autor da psicodinâmica do trabalho, complementa a leitura ao afirmar que: “O sofrimento no trabalho surge quando o sujeito é impedido de transformar seu sofrimento em algo simbólico, de inscrevê-lo numa linguagem que dê sentido à sua ação” (Dejours, A Loucura do Trabalho, 1992, p. 57).
Falência da simbolização
Assim, o burnout não é apenas um colapso de energia, mas uma falência da simbolização. O profissional torna-se um corpo que trabalha, cuida e se entrega, mas que já não consegue significar sua própria experiência.
O sintoma aparece, então, como tentativa de colocar em cena aquilo que não pôde ser nomeado: a dor de ter se tornado invisível para si mesmo.
Reverter esse quadro exige mais do que pausas ou técnicas de relaxamento. É necessário que o sujeito recupere sua posição desejante, reconhecendo seus limites, sua finitude e sua própria escuta.
A análise pessoal, a supervisão clínica e os espaços de palavra entre colegas são práticas essenciais para sustentar a subjetividade frente às exigências do Outro.
Em um mundo que glamouriza o excesso, cuidar de si é um gesto ético e, paradoxalmente, revolucionário. Como dizia Freud: “Onde estava o id, deve advir o eu” (Freud, 1933/1976, Novas Conferências Introdutórias, p. 101). Trata-se, portanto, de uma travessia: fazer emergir o sujeito de seu lugar de objeto, reinscrevendo o desejo onde antes havia apenas demanda.