Na sociedade hiperconectada, as pessoas se afastam cada vez mais umas das outras e isso impacta diretamente a forma como as crianças interpretam as relações e manifestam o brincar. “Sempre que faço a pergunta ‘as crianças de hoje brincam?’, a resposta da maioria dos adultos é um categórico ‘não’. Minha interpretação é que o brincar é uma necessidade humana e toda criança precisa brincar, pois brincar é existir”, afirma o músico e educador Cristiano dos Santos Araújo. Segundo ele, o que acontece na sociedade moderna é o afastamento das relações presenciais e a diminuição dos espaços onde os encontros e as trocas de brincadeiras acontecem. Isso faz com que as crianças percam repertório e diversidade no brincar.

Ele complementa que as famílias, com sua nova conjuntura social, em que todos os adultos trabalham, muitas vezes buscam descanso ou satisfação quando estão em casa, sem se envolverem diretamente com as brincadeiras. “Isso me faz lembrar do provérbio africano ‘é preciso uma aldeia para criar uma criança’, ao qual sempre acrescento: ‘sem crianças, não teremos mais aldeia’. Refiro-me à organização social, em que o outro faz parte do que somos; não vivemos sós e isolados”, observa.

Manifestação cultural

Comenta, ainda, que o brincar é uma manifestação cultural e, como tal, caracteriza-se pela transmissão oral entre pares, sejam eles da mesma idade ou de diferentes gerações. “Por isso, é essencial que as crianças tenham espaços para trocas intergeracionais, vivendo experiências lúdicas ao longo do dia. Como sociedade, devemos favorecer o brincar em sua essência, permitindo que as crianças criem livremente a partir das referências apresentadas”, ressalta. E acrescenta que também é importante que a escola organize encontros para brincar, convidando a família e a comunidade para ocupar esses espaços e, assim, favorecer experiências de brincar compartilhado.

Cristiano é formado em educação física, pós-graduado em psicopedagogia, inteligência socioemocional e educação física escolar e mestrando em educação. Também é palestrante, escritor, consultor educacional da editora MVT, assessor de conteúdo da Coleção Palavra Cantada na Escola e idealizador do Bora Brincar Ateliê Itinerante. Em seu livro ‘Brincaletrando: músicas para brincar e aprender’ (Wak Editora), direcionado a educadores e crianças, são abordados temas como brincadeiras cantadas, músicas e a ampliação de vocabulário e favorecimento da consciência fonológica.

Você afirma que o brincar é uma necessidade humana e toda criança precisa brincar, pois brincar é existir. Fale um pouco mais a respeito.

Brinco, logo existo. Essa brincadeira com a frase de René Descartes (filósofo francês autor da frase “penso, logo existo”) tem a intenção de trazer a reflexão sobre o brincar e a existência humana. Quando brinca, um indivíduo reconhece as manifestações sociais que fazem parte de seu entorno, experimenta e reorganiza sua psique e internaliza conceitos e valores que fazem parte da sociedade na qual está inserido. Por isso, toda experiência humana acontece por intermédio do brincar.

Quais são as possíveis consequências para a saúde física e mental das crianças quando elas param de brincar?

A criança não para de brincar, apenas troca o modelo de brincadeira. Brincar é uma necessidade humana, tal qual se alimentar. O que acontece é que o brincar do século 21, das crianças que nasceram na era digital, é cada vez menos social e isso implica vários fatores, como menor exploração e reconhecimento das emoções, falta de empatia (pois ela só acontece na relação com o outro) e da ampliação do universo (que também depende do outro para poder acontecer de maneira significativa). Lydia Hortélio, referência nacional quando falamos do brincar e da infância, cita uma frase que amo: “O ser humano só é inteiro quando brinca”. Peço licença para ir além: “O ser humano só é inteiro quando brinca com o outro”.

E quais as possíveis consequências para a sociedade como um todo?

Quando não temos a construção de laços sociais que acontecem por intermédio do brincar e essencialmente na infância, temos um grande afastamento entre as pessoas, um isolamento, e isso resulta na menor compreensão do outro, podendo também favorecer a extinção de culturas, pois a cultura essencialmente transmitida pela oralidade deixa de ser propagada de maneira natural por falta das relações e isso é prejudicial. Brincar é também uma das mais eficazes formas de liberação de energia.

O Brasil está no topo mundial do ranking de ansiedade e isso acontece pela falta de possibilidade de experiência de lazer. Ao brincar, temos momentaneamente uma pausa nas situações que nos afligem. Mesmo o adulto, quando se coloca em uma experiência de brincar com a criança, passa por esse momento de desligamento, e não encaro como fuga da realidade, mas momento de respiro e paz tão necessário para seguir em frente.

Brincar produz aumento da ocitocina (hormônio do amor), da endorfina (melhora o humor), da dopamina (melhora na motivação), da serotonina (regula e mantém o equilíbrio do humor) e da acetilcolina (favorece a concentração, a memória e a aprendizagem). Tudo isso sem precisar de medicamentos que hoje são utilizados para produzir parte desses hormônios. Brincar é, sem dúvida, uma alta prevenção de doenças psicossomáticas.

De que forma a família pode contribuir para a criança brincar de forma saudável?

A família é a principal fonte de inspiração por ser o primeiro ambiente social da criança, por isso, tem papel primordial na manutenção e no favorecimento de possibilidades de brincar. Nas sociedades nascidas antes da era digital, havia uma forte relação familiar e o brincar era culturalmente transmitido entre os pares sociais e naturalmente acontecia primeiro entre os familiares. O brincar é uma experiência social e, por isso, precisa ser aprendido. Uma família que valoriza e incentiva o brincar terá um contexto familiar mais saudável e com laços afetivos mais firmes.

E de que forma a escola pode contribuir nesse sentido?

As escolas, em contexto geral, precisam abrir espaços para o brincar livre, gerando oportunidades para que aconteça. Devemos lembrar que o brincar que promove experiência precisa ser o de conexão com o outro, então permitir nos intervalos entre uma aula e outra, favorecer no período de recreio e disponibilizar materiais para as brincadeiras. Também é importante ter um adulto responsável, como um bom observador e mediador de situações quando necessário, e não o detentor das possibilidades de brincar. O brincar não pode e nem deve ser utilizado como ferramenta de controle. As crianças precisam de liberdade para poder viver a intensidade de uma brincadeira e, nesse cenário, acontece o reconhecimento e a construção de inteligência emocional.

Fale a respeito do Bora Brincar Ateliê Itinerante.

O Bora Brincar Ateliê Itinerante foi pensado para promover o brincar livre em espaços diversos, entre eles, as festas infantis, sendo este o cenário que mais me preocupo, por não ser mais um lugar do brincar livre e espontâneo, tendo sempre um adulto “profissional do brincar” direcionando e controlando as brincadeiras. O projeto nasceu, portanto, para promover e mobilizar a experiência de brincar de maneira espontânea e com pouca ou nenhuma intervenção de adulto. Ele é organizado baseado nas abordagens de Maria Montessori e Emmi Pikler, e nossa atuação se baseia na filosofia desenvolvida por Loris Malaguzzi, em que o espaço é o terceiro educador e o adulto facilitador desse contexto. Nossa filosofia é a mobilização das relações sociais entre familiares, bebês e crianças.