A violência obstétrica, termo bastante discutido na atualidade, é caracterizada como experiência de violação de direitos humanos a partir do desrespeito aos desejos da parturiente, da anulação de sua autonomia no processo de tomada de decisão quanto ao cuidado e da retenção de informações qualificadas sobre os manejos mais adequados a partir da prática baseada em evidências. Ocorre nas diversas cenas do cuidado e da assistência à saúde durante o ciclo gravídico-puerperal, ou seja, no momento do pré-natal (gestação), do parto, do pós-parto, do puerpério ou do abortamento.

Nesta entrevista, o assunto é enfocado pela psicóloga Mariana Benchaya, coautora do livro ‘Violência: compêndio teórico-prático sobre vítimas e agressores’, publicado pela Sinopsys Editora. No capítulo que ela assina com a psicóloga Aline Rates – Violência obstétrica: aspectos teóricos, avaliação, estratégias de prevenção e intervenção –, são abordadas as caracterizações do termo e suas atualizações, suas origens e principais atores, os aspectos etiológicos, as consequências à saúde mental e as formas de prevenção e intervenção. Em seu conteúdo, são adotados as normativas propostas pelo Ministério da Saúde disponíveis até o início do ano de 2022, os manuais utilizados pelos serviços de saúde em todo o território brasileiro e baseados em evidências, além de artigos científicos sobre o tema.

Mestra e doutora em ciências da saúde pela Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), Mariana tem formação em terapia do esquema pela Wainer Psicologia e pelo NY/NJ Institute of Schema Therapy e certificação em terapia focada nas emoções pelo TFE Brasil/International Society for Emotion Focused Therapy.

Quais são os tipos de violência obstétrica?

Violência oral: comumente relatada em diversos países, caracteriza-se por expressões que vão desde o desencorajamento a experiências desejadas pela pessoa, como o parto normal ou a amamentação, até expressões agressivas e desrespeitosas, como a clássica proibição de vocalizações e gritos durante o trabalho de parto (“na hora de fazer não gritou”) e ameaças de interrupção no atendimento caso a parturiente não queira se submeter a procedimentos da equipe (“se não ficar com a perna parada, eu vou embora”). Tem como consequências a sensação de descaso por parte da equipe e a evitação da busca por cuidado e suporte apesar de dores e desconfortos.

Violência física: caracteriza-se principalmente pela realização de procedimentos já reconhecidos como inúteis e/ou violentos, como manobra de Kristeller (forçar o abdome da parturiente para baixo, na tentativa de promover a descida do bebê e a passagem pelo canal vaginal), enema anal (forma de lavagem intestinal, normalmente feita com soro fisiológico, que visa a evitar que a parturiente defeque durante o trabalho de parto), tricotomia (raspagem dos pelos pubianos), episiotomia (corte no períneo) e obrigar paciente a fazer cesárea sem a real indicação. Outras maneiras incluem a impossibilidade de se mover durante o trabalho de parto e a utilização de ocitocina sintética sem consentimento. Além disso, caracteriza-se como violência física a evitação deliberada do uso de métodos de alívio da dor quando necessários e/ou solicitados. A ocorrência de agressões físicas, como tapas e empurrões, durante o trabalho de parto também é considerada parte desse tipo de violência.

Violência sexual: é entendida como o tipo de violência que ocorre em menor frequência apesar de ser reconhecida internacionalmente. Toques vaginais e nas mamas sem necessidade clínica, falas de cunho sexual e/ou pejorativo e mesmo estupros caracterizam esse tipo de violência.

Violência psicológica: é composta de ameaças, ofensas e/ou comportamentos que produzem ou intensificam experiências traumáticas durante a gestação, o parto e o puerpério. Relações sociais ou familiares que resultem na maternidade compulsória também se qualificam nesse tipo de violência. Parcerias íntimas e/ou o genitor da criança são frequentemente autores desse tipo violência obstétrica, que tem repercussões na saúde física tanto materna quanto fetal. É classificada como silenciosa por algumas autoras, que apontam que a ausência de marcas físicas como provas da violência acaba por dificultar sua identificação e proteção.

Violência institucional/negligência institucional: protagonizada por agentes institucionais, é, por exemplo, o impedimento da presença do acompanhante durante o trabalho de parto ou mesmo a vivência desse momento completamente desacompanhada tanto de familiares quanto de membros da equipe do serviço de saúde. O uso indiscriminado de intervenções e a retenção de informações sobre o estado de saúde, o prognóstico e os tratamentos adotados figura como uma forma de violência. A negligência em relação aos cuidados necessários durante o trabalho de parto, como ausculta da frequência cardíaca fetal e auxílio para a livre movimentação da parturiente, também se caracterizam como casos de violência. Esse tipo de violência obstétrica se origina em acordos dentro dos serviços que visam a interesses alheios aos da parturiente, como a comodidade das equipes e a manutenção das agendas de consultórios dos profissionais da medicina.

Quais as possíveis consequências?

Há estudos que mostram muita relação da violência obstétrica com experiências de ansiedade, depressão e até de quadros de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) depois da experiência de parto. Um levantamento nacional que já está numa segunda edição, desenvolvido pela Fiocruz e outras instituições, levanta informações de como se nasce no Brasil e mostra taxas muito altas de relatos de violências vividas por mulheres no cenário obstétrico.

É importante chamar a atenção para o fenômeno do silenciamento da mulher nessas circunstâncias, o que é muito comum observar. Por exemplo, para uma intervenção x ou y, o próprio formato obstétrico de assistência ao parto não prevê que a mulher se previna de sofrer violências. Um motivo é o recorte de gênero. Nós, mulheres, somos educadas, inclusive numa situação de vulnerabilidade, de muita sensibilidade, que é o lugar de parir, a estarmos alheias às situações inclusive médicas quando, na verdade, precisamos ser protagonistas. Um dos tripés da humanização do parto e do nascimento está no protagonismo da mulher nesse cenário. Então é preciso muita mudança cultural, social, histórica.

Fale sobre o papel do psicólogo nesse cenário.

Em nossa profissão, não precisamos, necessariamente, passar pela dor das pessoas para empatizar com elas, mas, quando também vivenciamos, trazemos um universo de outras possibilidades. O que eu vivi de violência obstétrica foi a episiotomia, ou seja, um corte no períneo, que é uma prática muito comum no cenário do parto. Embora divulgada como uma prática baseada em evidências, na verdade, cumpre uma conveniência médica, pois não é necessária. Trata-se de um tipo de violência obstétrica que traz consequências muito graves e importantes – psicologicamente falando – para a experiência de nascimento.

Trabalho muito com saúde mental materna, nesse universo de violências, e a violência obstétrica é um tipo de violência considerada de gênero. Existe um cenário de violência nesse universo perinatal que não acontece só em centro obstétrico ou em atendimentos de postos de saúde, unidade básica de saúde ou consultório médico. Perpassa várias esferas da nossa sociedade, não só dentro desse universo de atendimento.

Existem diferentes tipos de violência contra mulheres gestantes, parturientes, não só nesses cenários da assistência. E escutamos, no lugar da psicologia, muitas experiências traumáticas em que julgamos, por exemplo, que a mulher está vivenciando uma depressão pós-parto. No entanto, muitas vezes, esquecemos de avaliar, enquanto clínicos da psicologia, como foi o parto, o que aconteceu durante essa assistência de parto.

De que forma os profissionais devem atuar?

Esta obra maravilhosa, organizada pela psicóloga Cristiane Flôres Bortoncello, traz esse viés de que vivemos uma cultura violenta e a naturalizamos. Então penso que tem uma chamada para além das intervenções das possibilidades de atuação dos psicólogos, dos profissionais que trabalham nessa área, de olhar para um fenômeno que nos atravessa enquanto cultura.

No cenário de intervenção, a mulher, que está ali envolvida de corpo e alma na situação, precisa ser protagonista e respeitada no seu processo de parir. Dentro da clínica, também vamos precisar fazer um pré-natal psicológico muito importante para que ela se prepare para esse evento, lide com seus medos, com as suas inseguranças.

E tem ainda uma política nacional de humanização do nascimento, que também traz informações sobre o trabalho das equipes, que precisam estar baseadas em evidências e trabalhando de forma multidisciplinar. Há vários olhares sobre a violência obstétrica que acabamos trazendo nesse capítulo do livro, que está bem completo nessas perspectivas de caracterização e intervenção.

Ainda há poucas publicações sobre o tema, porque são pautas que estão sendo levantadas atualmente, correto?

Exatamente. É preciso que se compreenda que se trata de um momento de muita vulnerabilidade, mas pouco ainda é conversado sobre essa questão com obstetras, não há um preparo, não há uma organização. Tudo isso gera repercussões importantes inclusive socialmente. Conheço mulheres que ficaram traumatizadas com o parto e não quiseram mais ter filhos por conta disso.