A desigualdade de gênero é apontada como uma das principais causas deste crime e a vivenciamos desde sempre, ou seja, o cenário é de que as mulheres são consideradas inferiores e dependentes do homem, sendo oprimidas e subjugadas, o que leva à crença de que eles podem e devem controlá-las e, portanto, agredi-las e até matá-las.

Tal crença, infelizmente, é explicitada inclusive por um número considerável de mulheres que julgam outras por seus comportamentos, vestimentas e que até acham que algumas merecem mesmo apanhar. É o machismo feminino.

Estamos diante da cultura machista sim, um machismo estrutural e o surpreendente é vermos jovens adolescentes ainda com essa mentalidade e, assim, potenciais autores de tal crime.

Avanço dos direitos das mulheres

Passou da época de se pensar que as meninas ou mulheres mais rebeldes e voluntariosas precisavam ser domadas, postas num cabresto pelos pais ou pelos maridos.  Afinal, o que vemos é rebeldia ou posicionamento contra todos esses padrões que lhe são impostos?

O que sabemos é que nem todo o avanço dos direitos das mulheres tem lhes trazido paz. O direito a escolherem seus parceiros, ao voto, ao trabalho etc. não é o bastante para tirá-las da mira da opressão, da submissão, da violência e da morte.

A mulher continua sendo vista como um objeto por muitos homens e como tal é muitas vezes categorizada: a para transar, a para namorar, a para casar.

Queixas no consultório

No consultório ainda hoje é comum a paciente apresentar reclamações de seu parceiro ou namorado no sentido de que ele se incomoda intensamente com seu jeito mais extrovertido e independente,  com suas roupas mais “ousadas” ou com suas amizades masculinas.

Os homens que matam mulheres são em sua maioria jovens e em grande número rejeitados na relação com a parceira que põe um fim ao relacionamento; em geral são pessoas insuspeitas, que nunca cometeram um delito sequer, são pacatos e por isso mesmo surpreendem não apenas as vítimas, mas seus familiares e amigos.

É o lado desconhecido de todos nós que se potencializa diante de determinados sugestionamentos, como bem nos ensina Elizabeth Roudinesco, psicanalista a e historiadora francesa (in “A parte obscura de nós mesmos”).

Expiação da culpa?

Mas por que os homens matam mulheres? Alguns deles praticam o feminicídio e se suicidam em seguida. Expiação da culpa? Mas muitos outros permanecem vivos e explicam seu ato culpabilizando a vítima, “justificando” sua prática com a pretensa conduta indevida da mulher.  Esta aparece na cena então como merecedora de sua própria extinção. É a punição pelo seu “mau comportamento”.

É o homem julgando as mulheres e lhes impingindo a pena de morte. É seu juiz e executor.

Temos que nos perguntar por que os homens não estão dando conta do empoderamento feminino? Por que isso os enche de ódio a ponto de não ser suficiente apenas terminar o relacionamento e partir para outro? Por que precisam extinguir a mulher? Na verdade, é a mulher que querem extinguir ou o que ela está representando?

Podemos pensar que o que buscam é exterminar a ameaça ao seu poder, à sua superioridade, ao seu controle, extirpar a indevida insubordinação e insubmissão feminina, tão indesejadas e por que não dizer intoleráveis. É que estas contrariam o preceito reforçado ainda pela sociedade de que a mulher é alguém a controlar, confrontam com a ideia apreendida de dominação patriarcal que enaltece os valores masculinos em detrimento dos femininos.

Violência simbólica

A liberdade feminina estaria a invalidar os homens no lugar de superiores que foram ensinados e acreditam ocupar na sociedade? Mais, desafia indiretamente a integridade masculina, toda sua afirmação viril?  (“A dominação masculina – a condição feminina e a violência simbólica” do filósofo Pierre Bourdieu)

Chamou minha atenção especialmente um feminicídio praticado no interior de São Paulo, em Tupã no final de fevereiro deste ano, no qual o marido matou sua esposa a facadas tirando-lhe o coração e as vísceras.

O coração da vítima estava em suas mãos quando os policiais o encontraram. É, simbolicamente, dizer que o amor que ela sentia pertenceria apenas a ele?  É não suportar que ela seja feliz sem ele ou um ato seu de dominação, de poder?

O assassino extirpou da mulher ainda as vísceras, as suas entranhas que, figurativamente, nos remete ao que brota do mais profundo das pessoas. Sua vontade inconsciente foi a de repúdio também a tudo que ela acreditava (liberdade, independência, individualidade, respeito)?

Ações educativas

Por essa razão, para além de leis criminalizadoras são necessárias ações educativas para ensinar aos homens que o respeito às mulheres é fundamental e imprescindível, o que implica necessariamente que elas precisam ter liberdade de escolhas para que possam exercer seus direitos.

Isto tem que começar em casa, na infância, percorrer a adolescência e finalizar na vida adulta. Os pais, assim, têm uma função primordial junto aos seus filhos e filhas.

Diante disso precisamos pensar em como os estamos educando. Não devemos ensinar os meninos a respeitarem suas irmãs, amigas, namoradas, esposas, mães, as mulheres? E às meninas a não tolerarem qualquer desrespeito e violência? Estamos displicentes como pais dando continuidade à cultura machista, à superioridade/dominação masculina e à objetificação da mulher?

Para exemplificar basta constatarmos que em muitos lares brasileiros as meninas não podem trazer seus namorados para compartilhar sua cama, seu quarto, mas até acabam dormindo na casa de seus namorados porque lá os pais do menino não se incomodam.

Os adolescentes homens são até enaltecidos se têm várias namoradas, enquanto isso as mulheres ainda são julgadas por essa mesma atitude.

Também os pais muitas vezes interferem no estilo de roupas usadas por suas filhas e quanto aos filhos restrição alguma é apontada.

Dinâmica familiar

A dinâmica familiar é muito importante, pois muitas vezes os filhos são educados vendo suas próprias mães numa relação abusiva.

Como crescem então esses meninos?  Acabam carregando esses mesmos conceitos e preceitos instalados na família. E as meninas?  Bem, ou se rebelam ou se submetem.  Talvez por isso grande parte das mulheres vítimas de relacionamentos opressores e violentos não se deem conta ou demorem a perceber que estão sofrendo abusos. Não é só porque amam o parceiro, mas sim porque também foram criadas experenciando exemplos equivocados em suas próprias casas, diante de uma construção “natural” de que o masculino está na medida de todas as coisas.

Os pais, as escolas, a sociedade têm que voltar seus olhos para essa grande questão: interromper a cultura de que as mulheres são objetos, que são inferiores aos homens e assim devem ser tratadas, que são frágeis e por isso precisam deles para lhes cuidar. Não, o que elas precisam e desejam é ter alguém para dividir, compartilhar suas vidas, sendo que a parte do cuidado deve ser mútua e permear toda relação.

O que precisa ser repensado

Assim, para além da criminalização é urgente a educação. Nós pais com nossos filhos ainda pequenos. As escolas com ações que envolvam os alunos em tais questões desde os primeiros anos escolares e o Estado com campanhas não apenas voltadas para alertar as mulheres de possíveis abusos, mas voltadas principalmente aos homens trazendo-lhes a compreensão dos direitos e do papel que a mulher tem na sociedade atual.

Não podemos esquecer que também algumas religiões exercem um forte papel de estímulo ao machismo quando prega aos seus fiéis a necessidade de submissão da esposa ao marido ou a proibição de certos comportamentos às mulheres, o que precisa ser repensado.

E MAIS…

Verdadeira ode às mulheres

Por fim, deixo à reflexão dos leitores trecho da linda letra da música “Triste, louca ou má” (Canção de Franciso, el Hombre), que bem pode-se considerar como verdadeira ode às mulheres:

“Triste, louca ou má

Será qualificada

Ela quem recusar

Seguir receita tal

A receita cultural

Do marido, da família

Cuida, cuida da rotina

Só mesmo rejeita

Bem conhecida receita

Quem não sem dores

Aceita que tudo deve mudar

Que um homem não te define

Sua casa não te define

Sua carne não te define

Você é seu próprio lar”

Eu não me vejo na palavra

Fêmea, alvo de caça

Conformada vítima

Prefiro queimar o mapa

Traçar de novo a estrada

Ver cores nas cinzas

E a vida reinventar”.