A experiência de se estar na escola não se traduz somente pelas representações que a “forma escolar” nos traz como registro, ou seja, corpos sentados, imóveis e passivos, vendo e ouvindo por horas um professor apropriado do saber, transmitindo conteúdos escolares. É certo que muito disso ainda aconteça, no entanto, há também a convivência com os pares, seus prazeres e conflitos; a hora do recreio, para brincar ou jogar; as mudanças de espaços para as aulas de movimento, música, artes; os cheiros e mau-cheiros; os sabores e dissabores de viver e aprender junto a seus semelhantes em um meio social plural.
Porém, diante da necessidade de fazer a escola em casa, a criança ficou sob a tutela da família para as situações de aprendizagem escolar, deixando pais e professores confusos sobre como, quando e quanto cobrar de seus filhos e alunos. Nesse momento, a representação mais perversa da escola se sobrepôs às memórias de prazer. A “forma escolar” na escola remota se transformou em horas de tela; tarefas sem fim; cobrança de um corpo imóvel; falta da mediação imediata do professor, subvertido em estratégias virtuais para manter a atenção e o interesse das crianças. Estas, sem corpos; imagens de cabeças que se agitam, como se pudessem pular a janela da tela e chegar a escola que “ainda” se lembram. Aquela escola é que tinha graça…
Corpo em movimento nas aulas remotas
Como levar para a escola em casa um pouco da “graça” que a presencial favorece? Como beneficiar a experiência do corpo em movimento, as brincadeiras e o prazer das trocas com os amigos? A partir desses interrogantes nasceu o desafio de fazer as aulas de Educação Física infantil remotas, interagindo diretamente com as crianças. A ideia foi criar intervalos com brincadeiras corporais e simbólicas entre as aulas com conteúdos curriculares.
Esse modelo de experiência nasceu com um propósito: “brincar com as crianças como crianças”, ou seja, uma aposta de que a adesão das crianças às aulas aconteceria se elas fossem afetadas pela experiência de afeto do outro, no brincar. No princípio, pensou-se nas condições plurais de cada um em sua própria casa, os espaços e objetos comuns que se poderia lançar mão para brincar. Assim, nasceu o “Baú de memórias dos dias de chuva”. Talvez esse título não evoque um significante imediato, refletindo sobre os hábitos atuais da criança contemporânea já naturalmente mais confinadas e entretidas por jogos eletrônicos. Mas, em outros tempos, os dias de chuva, promoviam o ajustamento das brincadeiras de fora aos espaços de dentro de casa e nada escapava à produção imaginária e simbólica das crianças.
Nesse contexto, professores de diferentes gerações remexeram seus baús de memórias e trouxeram as brincadeiras que brincavam quando crianças, com experiências, lembranças e prazeres singulares; as sensações que viviam, os medos que sentiram e as marcas que deixaram. Assim, esses educadores foram afetados e a “criança” neles aflorou, para criar um baú de brincadeiras adaptadas para as aulas remotas.
O lúdico a favor do aprendizado
Foram, então, convocadas crianças de três a oito anos (e alguns pais), a construírem cabanas no sofá, com almofadas e toalhas para um acampamento, um piquenique ou simplesmente ter um espaço só seu; escorregar sobre panos nos espaços da casa, desviando de paredes, móveis e pessoas; caixas de papelão que se transformavam em carro de corrida ou em navio na tempestade; colchões da cama apoiados sobre cadeiras para escorregar, rolar e pular ao som de músicas.
O esconde-esconde foi feito com a câmera voltada para a sala de cada casa e enquanto o professor “batia cara”, as crianças enfiavam seus corpos em espaços mínimos, fazendo-se desaparecer. Um alívio de ausência em um tempo de excesso de presença (controle). As múmias com papel higiênico todo enrolado nos corpos, imóveis ao serem cobertos, para logo, arrebentar o papel em uma explosão tônica para libertar-se. As almofadas eram lançadas ao chão como pedras num rio a ser atravessado ou colocadas na cabeça para servir ao equilibrista. As almofadas eram ainda, lançadas acima e agarradas enquanto se repetia o nome de alguém e todos fugiam na brincadeira de “alerta”. Entre outras tantas outras, teve ainda “stop” usando laranjas como malabares e determinando a letra inicial de coisas a serem procuradas pela casa. Enfim, um baú cheinho de prazer ajustado para a experiência singular de cada criança em cada faixa etária.
O convívio por pixels
O projeto realizou seu propósito principal que foi aproximar as crianças dos prazeres do convívio na escola; do corpo em movimento, do riso solto, da animação na voz e da relação com outros. Pouco a pouco, as aulas presenciais serão retomadas e certamente novas adaptações deverão acontecer seguindo os protocolos sanitários para garantir a proteção de todos dentro da escola. No entanto, as experiências de prazer sempre encherão novos baús, pois, ao revisitarmos nossa criança, nossa infância, descobrimos o quanto a brincadeira tem sido nossa parceira em qualquer tempo, em qualquer infância.
A criança é um “agente” social, agindo em tempo real, ajustando-se às demandas de cada tempo histórico e constituindo-se. No entanto, para elaborar esse agir no mundo, a criança brinca, fantasia, encena e se apropria de um viver compartilhado com outros agentes, seus pares. Daí a relevância da sociedade em se ocupar de um tempo de presença e dos espaços de relação, ainda que ressignificados.
2 respostas
Parabéns pelo belo material, o Baú de memórias, independente do fim da pandemia, realmente pode ser utilizado tanto em casa como no ambiente escolar, em dias de chuva ou em dias de sol.
Propostas em que o lúdico está presente e permite que o imaginário da criança esteja presente o tempo todo.
O que podemos criar com uma caixa de papelão?
Com um tecido?
Obrigada pelas dicas, muito valiosas.
Obrigada. A equipe fica muito feliz com esses retornos tão positivos
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