A série britânica “Adolescência “apresentada pela Netflix conta a história de Jamie, um adolescente de 13 anos que é acusado de ter assassinado outra adolescente, Katia.

A trama envolve os adolescentes e seus conflitos internos marcados por sofrimentos intensos envolvendo famílias, escolas, e a sociedade descontrolada. A série assusta, mas também convida a uma reflexão urgente sobre os atuais laços socias que o ser humano vem estabelecendo, que as relações virtuais vem substituindo as relações presenciais de afeto.

Visão psicanalítica

A respeito da séria se fará uma análise pautada na visão psicanalítica da trama apresentada, sendo de extrema importância entender que a adolescência é um período de desenvolvimento conflituoso por si só.

É uma fase do desenvolvimento que o sujeito se depara com seus conflitos internos relacionados a sua posição no mundo.

Seu corpo está se transformando, não é criança nem adulto, os hormônios estão a todo vapor provocando sensações até antes adormecidas como os impulsos sexuais que eles não sabem muito sobre isso.

Existe um tabu em se falar em sexualidade com os membros familiares, e a internet hoje é o campo de aprendizado, e lá tem de tudo ao alcance do jovem.

Este é um dos pontos cruciais do personagem de Jamie, que se achava feio, desforme, ninguém queria ficar com ele e a angústia crescente o deixa cada vez mais em desamparo e tomado por aspecto de agressividade passiva até que um dia explodiu.

Traumas infantis

A adolescência na visão psicanalítica revive todos os traumas infantis vivenciados na primeira infância que inicia-se com a fase oral, anal, fálica e genital, este período vai de zero a mais ou menos 10 anos de idade, depois vem a fase de latência que é um apaziguamento interno, período que há um movimento para formar grupos e por volta dos 13 a 14 anos inicia-se a adolescência que as vivencias reprimidas retornam para os comportamentos com a finalidade de obter uma descarga tensional. 

Porque, segundo a visão psicanalítica as vivencias traumáticas ficaram recalcados no inconsciente em forma de representações e na adolescência os órgãos genitais amadurecidos são capazes de aliviar as tensões internas.

Só que este jovem não sabe o que fazer com tantos impulsos, gerando angústia, conflitos e necessita de um aparado e orientação familiar, e as vezes até ajuda de profissionais para ajudá-los a fazer este processo de transição da adolescência para a vida adulta de uma forma mais tranquila e equilibrada.

A trama traz esses conflitos claramente, os adolescentes perdidos, famílias que não sabem o que acontece com os filhos, professores e instituição escolar que não se importam e negligenciam e perdem totalmente a autoridade e o controle da situação.

Contenção emocional

Um outro problema crucial que a serie mostra é a dissolução da hierarquia entre gerações, uns fenômenos crescentes que deixam os adolescentes governar-se, ou se governado pelos seus pares (inclusive da internet) sem contenção emocional que o adulto deveria fornecer pela sua experiência.

Hoje as referências são os próprios amigos que são igualmente desorientados o que é facilitador de riscos de agressividade, violências e impulsividade de comportamentos.

Estes jovens com corpos desenvolvidos e não harmônicos parecem adultos, mas continuam com aspectos emocionais infantis e precisam de limites, orientações para ter um desenvolvimento mais saudável.

Uma adolescência saudável envolve comprometimento familiar de estabelecer limites na busca da independência dos jovens e propiciar os estabelecimentos de laços sociais e afetivos duradouros, dar espaço para que possam se desenvolver é diferente de largar o adolescente a sua própria sorte.

Explosão de raiva

Os pais de Jamie, assim como tantos outros, não tem ideia do que o seu filho está fazendo, o que pensam, o que desejam, cada um está vivendo mundo diferentes na mesma casa.

O pai de Jamie só trabalhava para cumprir com as obrigações da casa, não conversava com o filho. Seguia uma vida de regras morais fortes e nas cenas finais relembrando seu passado difícil se emociona com o filho quando admite que sofreu violência doméstica e quis dar uma vida diferente para ele.

O pai demostrava indícios de que não aceitava o filho como era, a cena em que ele admite não olhar para o filho porque ele não era bom nos esportes, ele sentia vergonha do filho quando ele não atendia as suas expectativas narcísicas.

Aparece também claramente na serie os problemas de explosão de raiva do pai, agressões físicas, silêncios prolongados, isolamento sutis e mudanças bruscas de comportamento.

Desconexão entre filhos

O pai também tinha questões fortes de ordem emocional e não conseguiu olhar para o seu filho de uma maneira afetuosa e compreensiva.

A mãe sempre oferecendo o melhor para o filho, o quarto arrumado, computador, vídeo game e ao mesmo tempo confessa que o filho passava muito tempo no quarto no computador, pedia para ir ele desligar e ir dormir, mas nunca fora ver o que o filho estava conectando na internet. 

Ela e nem o pai viram o problema que o filho estava passando. A irmã tentava viver a sua própria vida tentando estabelecer uma interação, mas também não conseguia.

A serie mostra o drama de uma família desestruturada com a ausência dos pais, fortes regras morais e um distanciamento entre os membros familiares, e não é só de Jamie.

Adan o filho do policial que investiga o caso traduz a desconexão entre filhos adolescentes e pais, quando ele diz “Pai você não está entendendo”. Os adultos acreditam que estão no controle o que na verdade estão totalmente perdidos na comunicação com seus filhos e os impactos são desastrosos.

Adolescência negligenciada

Jamie é um símbolo da adolescência negligenciada, as causas são dores silenciosas, dificuldades de expressão, falta de espaço seguro que o proteja e a falta constitucional faz com que eles buscam uma forma de se sentir aceitos e busquem substância e formas idealizadas para diminuir a dor psíquica, mas as conexões que acabam buscando estão relacionadas com os seus próprios sintomas.

Buscam pessoas iguais para se sentirem aceitos, são capturados pelos objetos imaginários por se sentirem estranhos dentro de casa.

A serie permite vários apontamentos sobre psíquicos como o bullying sofrido por Jamie e os outros adolescentes principalmente no ambiente escolar.   

A escola é o cenário central da adolescência e serie mostra as falhas da instituição e não protege os alunos.

O bullying está presente em toda parte da escola, não só Jamie sofre com isso, outros colegas e Katie Leonard, a vítima do crime foi alvo de ataques constantes na internet, sofreu sexting, tendo sua foto íntima exposta e ridicularizada, um retrato cruel da misoginia na sociedade.

Jamie sofrendo do mesmo mal busca se aproximar de Katie tentando criar um vínculo que também foi excluído e rejeitado por ela, o que desencadeou a causa do crime.

Bullying

O bullying traz um profundo sentimento de humilhação, rejeição, isolamento e dores silenciosas que pode levar o sujeito a um colapso emocional.

Jamie rejeitado por Katie se ligou ao grupo Incel (identidade digital e ressentimento), uma comunidade online que abriga homens frustrados afetivamente e que expressam ódio contra as mulheres.

Estas atitudes agressivas contra as mulheres são sustentadas por um machismo perverso que impõe uma identidade baseada na força, insensibilidade e agressividade.

O garoto era influenciado por Victor Krone (fictício) que representa líderes reais que promovem discursos de ódio, dominação, poder, violência que encontra ecos em jovens vulneráveis afetivamente e procuram um espaço de pertencimento.  

Para se comunicarem usam códigos, emojis e linguagem criptografada, a serie mostra como os adolescentes se comunicavam sem que os adultos compreendessem pelo abismo geracional que existe.

Esta linguagem funciona de uma forma emocional e política revelando alianças, rejeições em comunidades digitais visando pessoas com um ego mais fragilizados e são presas fácies de serem manipuladas

Jamie mostrou esta fragilidade e inseguro no início da sério quando ficou com medo dos policiais e fez xixi na calça, ele é um símbolo desta adolescência largada e desamparada.

Os adultos perdidos e totalmente despreparados são demostrados pelos professores e dirigentes da escola que faltava intervenção, liderança, orientação, transformando a escola em um espaço em que o sofrimento do aluno e a violência é normatizado, os problemas são ignorados até que se tornam incontroláveis.

A sociedade atual vem sendo contaminada pelos efeitos dos discursos de ódio e pelas fakes News que invadem as famílias deixando um clima de insegurança, incertezas e incita a violência em detrimento ao amoroso.

Este movimento colabora para que cada vez mais os seres humanos se desumanizam e ataquem uns aos outros.

Na série foi um fator abordado quando os pais de Jamie passam a serem perseguidos, julgados, condenados e rotulados.

Inconsciente

As pessoas condenam essa família e fecham os olhos para os seus próprios atos violentos.

A sociedade continuará julgando, e projetando no outro aquilo que é seu, não enxergam o que acontece dentro da sua própria casa, do seu próprio eu. 

A série mostra também de que existe possibilidades de estabelecer um dialogo com os adolescentes de uma forma eficaz, a cena que a psicóloga entra em cena para falar com Jamie.

Um profissional preparado pode ajudar os adolescentes a se conectarem com os seus aspectos emocionais conflituosos que estão adormecidos no inconsciente e quebrarem resistências marcados pelo silêncio, negações e outras defesas psíquicas.

A importância de um profissional bem-preparado é fundamental e pode ajudar os jovens a se entenderem e crescerem emocionalmente.

A fala de Jamie em relação ao bom profissional fica explicitado quando ele diz a psicóloga de que o outro profissional não fazia perguntas tão difíceis.

O que um tratava as coisas com superficialidade e o outro procurava aprofundar e buscar as causas emocionais que o levou a cometer o crime. 

Psicanaliticamente pode-se dizer que o analista tem instrumentos e manejos técnicos que podem acessar as representações inconscientes e trazê-las ao consciente para serem refletidas e elaboradas. 

As intervenções da profissional fizeram com que ele finalmente se expor em atos o que ele até então silenciava.

No final da serie o desfecho foi a fala “a vida segue”, pode-se abrir uma reflexão no sentido de que os policiais seguiram fazendo o seu trabalho, a escola segue seu curso, os professores continuaram na sua impossibilidade de educar, os pais precisarão encontrar e reconstruir a vida, a irmã vai precisar lidar com o peso do estigma de ser irmã do ocorrido, a sociedade continuará julgando e condenando.

Pulsão de morte

Será que os telespectadores farão uma reflexão do momento atual sociofamiliar que estamos vivendo ou será só uma maneira de descarregar suas tensões através da trama e continuarão cegos achando que a desgraça só chega na casa dos outros e na minha está tudo certo.

 Encerro minhas reflexões trazendo uma fala de Freud que nos diz que a natureza do homem é má e que precisamos desenvolver o nosso afeto amoroso para driblar a nossa própria pulsão de morte.

O sentido da vida humana é manter-se humanizado, somos seres de ligações afetivas e nada substitui o contato afetivo, a linguagem os laços sociais. Nenhuma máquina poderá reproduzir o calor de um abraço.