Considerado um dos distúrbios mentais mais difíceis de se tratar e com maior estigma social associado, o transtorno da personalidade borderline (TPB) é caracterizado por um padrão de intensa desregulação emocional e de hipersensibilidade nos relacionamentos interpessoais. O que acaba levando o paciente a desenvolver uma série de comportamentos impulsivos e autodestrutivos e até mesmo à desorganização do senso de self.

Ainda que diferentes abordagens psicoterapêuticas sejam efetivas, pessoas com diagnóstico de TPB costumam ser vistas como um desafio pelos terapeutas. Isso porque os padrões relacionais mal-adaptativos desses pacientes influenciam não só nas relações com a família, os amigos e no trabalho, mas, também, no relacionamento terapêutico. Portanto o modo como o profissional responde às dificuldades desses indivíduos é crucial para determinar o sucesso ou o insucesso do tratamento.

Nesta entrevista, o psicólogo Vinícius Guimarães Dornelles, especialista em terapias cognitivo-comportamentais e mestre em psicologia na área de cognição humana, fala sobre o assunto. Ele é o primeiro treinador de terapia comportamental dialética (DBT) nativo de língua portuguesa do mundo. Gaúcho radicado em São Paulo/SP, é sócio-diretor da DBT Brasil, organização tutelada pelo Behavioral Tech (Seattle-EUA), que capacita profissionais da saúde mental a desenvolverem a DBT. Também é um dos responsáveis por trazer ao Brasil essa abordagem criada pela psicóloga norte-americana Marsha Linehan e uma das mais adotadas para tratar o TPB.

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Junto com o psicólogo Diego dos Santos Alano (Porto Alegre/RS), Vinícius é organizador do livro Transtorno da personalidade borderline: da etiologia ao tratamento. Publicada pela Sinopsys Editora, a obra com 864 páginas é a mais completa e atualizada do mundo sobre o assunto, reunindo autores de renome nacional e internacional que são referência em cada uma das temáticas abordadas. Direcionada a psiquiatras, psicólogos, psicoterapeutas e outros profissionais interessados, pode ser utilizada como um roteiro de estudos para aprofundamento de conhecimentos e como um manual de consulta para clínicos.

O livro visa contribuir com a importante missão dos psicoterapeutas e, consequentemente, na conquista da liberdade e da alegria de viver pelas pessoas com transtorno da personalidade borderline. Também tem como importante função acabar com a estigmatização social que os pacientes sofrem. O objetivo é que o TPB seja compreendido como uma condição clínica que gera grande sofrimento em muitas pessoas, mas que elas continuam sendo pessoas como quaisquer outras. Ou seja, um universo muito mais amplo do que propriamente o transtorno, que é uma porção que acompanha o indivíduo em algum período ou, dependendo do caso, por toda a vida.

Qual o maior desafio clínico que existe no tratamento do transtorno da personalidade borderline?

O maior desafio clínico consiste em conseguir encontrar um equilíbrio dialético entre aceitação e mudança. Isso inclui o terapeuta saber se movimentar quando tem que ir para uma postura maior de aceitação, quando vai trabalhar elementos maiores de mudança. É também saber em que momentos terá que ser mais firme ou expressar o quanto acredita no paciente; o quanto vai ter que flexibilizar situações em que percebe que o indivíduo ainda não está pronto para lidar com elas; o quanto vai ter que exigir e quando nutrir o paciente.

Trata-se de um tratamento riquíssimo e lindíssimo, mas que requer muito do terapeuta. Penso que ter essa capacidade, essa flexibilidade, saber fluir com o processo terapêutico, é realmente a parte mais complexa do tratamento do TPB. As técnicas em si não são difíceis em geral. O problema é encaixá-las exatamente no momento em que elas têm que ser encaixadas. É isso estar dentro do processo, fazendo com que ele tenha movimento, fluxo, velocidade e que a gente consiga fazer o paciente fluir dentro dele. Essa é a parte complexa.

Como o terapeuta deve proceder quando o paciente resiste ao diagnóstico do TPB?

Nesse caso, é preciso deixar claro para o indivíduo que o caminho do tratamento é o de ensinar novas formas de lidar com os problemas da vida. A grande questão aqui não é tratar o diagnóstico em si, mas, sim, trabalhar para que os pacientes tenham vidas dignas, vidas importantes, vidas que sirvam para que eles não pensem em se matar, por exemplo.

Como é a situação das famílias em que há um cuidador com TPB?

É muito variável a situação nas famílias em que há um cuidador com TPB. Estamos falando de um dos transtornos que têm a maior heterogeneidade de apresentação de fenótipos possíveis. Grande parte desses pacientes tem dificuldades com seus filhos, podendo ser muito instáveis e intensos. Muitas vezes, podem ter comportamentos negligentes e abusivos emocionalmente ou fisicamente. Ao mesmo tempo, nunca conheci um paciente com TPB que não amasse desesperadamente os próprios filhos e que não quisesse realmente o bem deles.

Existe um grande mito na área da saúde mental de que indivíduos com TPB tenham déficit de empatia ou até um certo grau de sadismo. Quando, na verdade, a maior parte dos pacientes com transtorno da personalidade borderline é extremamente empática, se preocupa com os outros. A grande questão é que eles não têm habilidades para lidar com o próprio processamento emocional. Por isso, o conselho do especialista aos profissionais da saúde que atendem crianças cujos pais tenham o transtorno é que trabalhem com essas famílias validação e efetividade interpessoal, que são habilidades comportamentais desenvolvidas por meio da terapia comportamental dialética.

Qual a importância do Sistema Único de Saúde (SUS) no tratamento de pacientes com TPB?

O Brasil é um dos poucos países do mundo a ter saúde universal. Para se ter uma ideia clara sobre estatísticas, a presença de um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) no município diminui em até 14% o risco de suicídio nessa população. Os profissionais que trabalham no SUS, na sua maior parte, são altamente qualificados e dedicados a realmente ajudar as pessoas. A estrutura pode não ser boa, mas o modelo de saúde pública no Brasil é muito bem pensado e excelente.

E a DBT é uma terapia que se encaixa nas diretrizes do SUS, em especial, os treinamentos de habilidades, porque a nossa meta não é reduzir quadros diagnósticos e sintomas. Isso é consequência do nosso trabalho. Nosso foco é qualidade de vida e bem-estar. É preciso trazer cada vez mais a lógica de tratamento mental para o aspecto da saúde pública. A gente tem um problema no Brasil que é a elitização da saúde mental. Quando a maior parte dos transtornos que nós trabalhamos são justamente de pessoas que têm dificuldades em relação a trabalho, em relação a questões econômicas. Que não têm dinheiro para pagar.