Falamos de suicídios, no plural, porque não existe um suicídio emblemático. Suicídios são atos intencionais cujo objetivo é a morte. A definição parece simples, mas podemos problematizar a questão da intencionalidade: será que a pessoa queria, de fato, morrer?

Há uma linha contínua entre colocar-se em situação de risco, os atos autodestrutivos, automutilações, chegando ao ato de se matar. O que caracteriza o suicídio é a ambivalência entre o desejo de viver uma outra vida e a morte. Suicídios são fenômenos multifatoriais e tentativas de buscar uma causa única. É o caminho certo para o equívoco. Entre os fatores que estão relacionados com suicídio há os físicos, psíquicos, sociais, ambientais.

Aumento nas estatísticas

Os números dos suicídios têm aumentado a cada dia, principalmente em situações de crise, anomia, a exemplo a pandemia mundial que estamos vivendo. Nessas circunstâncias, há aqueles que sofrem mais, tem experiências de desmoralização, humilhação, vergonha, como é o caso de grupos LGBTQI+, indígenas e pessoas com transtorno mental. Mas, é importante ressaltar que são grupos de risco e que o ato suicida é realizado pela pessoa, que é responsável pelo ato. Entretanto, esses grupos têm maior grau de exposição ao sofrimento existencial, engrossando as estatísticas.

Teorias, tipos e modos de ação

Existem vários tipos de suicídio; os planejados, impulsivos, os que não ofereceram nenhuma pista e os que assinalaram que a morte poderia acontecer. Em virtude da idiossincrasia humana, torna-se impossível compreender a causa a partir de apenas uma faceta.

Há várias teorias buscando explicações e compreensão sobre o ato suicida. Karl Menninger (1965), numa abordagem psicodinâmica, aponta que tendências construtivas de vida e destrutivas de morte operam na existência humana. Quando as tendências destrutivas predominam a pessoa se aproxima da morte, predominando o adoecimento, comportamentos autodestrutivos e o suicídio. Esses elementos podem estar inconscientes e a possibilidade de trazê-los à consciência ajuda na prevenção e elaboração das tendências suicidas. Segundo o autor, para que haja morte por suicídio é preciso ocorrer: 1. Desejo de matar (elemento agressivo), 2. Desejo de ser morto (o elemento punitivo); 3. Desejo de morrer (elemento erótico).

O que não consegue ser dito

A abordagem existencialista aponta que o suicídio nem sempre está relacionado com doença ou transtorno mental. Pode ser um exercício de liberação, como aponta Binswanger, (in Moreira, Cruz, Vasconcelos, 2005). Shneidman, Farberow (1959) desenvolveram a teoria sobre as tentativas de suicídio, que denominaram de cry for help (pedido de socorro), trazendo subsídios para discutir que o suicídio é uma forma de comunicação de uma pessoa em sofrimento. Durante um tempo se considerou que pessoas que querem se matar não avisam e as que tentam, querem chamar atenção. Se tirarmos a palavra só teremos, sim, que a tentativa de suicídio é uma forma de chamar atenção das pessoas sobre o que não consegue ser dito.

O autor aponta a psychache (traduzida como dor psíquica ou sofrimento existencial), como a dimensão frequentemente presente na ideação e tentativa de suicídio (Shneidman, 1993). Está ligada a intenso sofrimento, desmoralização, humilhação, desamparo, desesperança, falta de sentido de viver que intensificam o desejo de morrer. Mais do que diagnósticos e classificações, o autor aponta para a necessidade fundamental de ouvir com atenção a esse pedido de ajuda. Desenvolveu também a questão dos cuidados aos impactos que uma tentativa de suicídio provoca na pessoa, nos familiares e amigos próximos. O autor usa o termo posvenção para caracterizar essas ações. A prevenção tem como objetivo principal diminuir o número de suicídios e a posvenção é a forma de mitigar o sofrimento quando a tentativa ou o suicídio já ocorreram.

O impacto familiar e social

Um suicídio afeta entre 6 a 10 pessoas entre familiares, amigos, pessoas próximas. Se o suicídio ocorrer em local público, esse número pode ser ainda maior. É como se fossem ondas concêntricas de impacto.

O luto é um processo de elaboração de perdas de pessoas ou situações significativas. É uma crise de grandes dimensões, que afeta profundamente a vida do enlutado, nas dimensões físicas, psíquicas, sociais e espirituais. Não é doença, embora em certas circunstâncias possa levar ao adoecimento físico ou psíquico. É universal, atinge a todos seres humanos, mas se manifesta de forma singular para cada pessoa. Influem no processo de luto: a pessoa que foi perdida e a sua relação com a família; características pessoais do enlutado; o tipo de morte; a fase do desenvolvimento em que se encontra o enlutado e a rede de apoio o familiar e social.

Enlutados pelo suicídio

Não há uma abordagem teórica melhor para cuidar de enlutados. O importante é que o terapeuta esteja em consonância com os preceitos de cada abordagem, mas, o que não se pode deixar de lado, é a escuta qualificada, empatia e compaixão. Evitar sempre julgamentos apressados, ampliação do estigma e explicações simplistas. É óbvio o que estamos apontando, mas infelizmente o suicídio afeta alguns profissionais de saúde e terapeutas com tanta intensidade que eles acabam trabalhando de forma defensiva, recusando o atendimento ou dando conselhos e sugestões que interferem no processo de elaboração do luto.

Sempre respeitando o movimento do enlutado, é importante considerar os aspectos acima mencionados, como aponta Fukumitsu, (2018).

Desconstrução de tabu

O suicídio é uma morte estigmatizada, por isso é importante desconstruir o tabu do suicídio, facilitando a comunicação a respeito. Observamos que o silenciamento diante do suicídio não diminuiu o número de eventos, muito pelo contrário, eles aumentam a cada dia e assim se mantém o tabu. O espaço terapêutico sigiloso e respeitoso pode ajudar na elaboração da culpa intensa em relação à perda. Como se trata de um luto muito sofrido, não reconhecido, legitimar os sentimentos ajudam o enlutado a se firmar perante a sociedade. Enlutados por suicídio afirmam que é sempre difícil responder questões sobre o motivo da morte do ente querido, diferente das mortes por doenças, que são mais aceitas. Todo o atendimento deve ser pautar na ética, respeito, sigilo. Esse último pode ser revisto quando há risco de vida. Quando há risco de suicídio é importante, no contato inicial, estabelecer a possibilidade de avisar familiares ou amigos sobre esse risco. Entretanto, essa decisão precisa ser conjunta, pois se for feita sem conhecimento do enlutado pode haver quebra de confiança e abandono da terapia.

Além da Psicoterapia, podem ser oferecidos outros cuidados, como atendimento em grupos de enlutados por suicídio oferecido por ONGS e instituições universitárias com cursos de especialização ou pós para formação de terapeutas. É preciso também orientar profissionais sobre atendimento respeitoso e ético com familiares de pessoas que morreram por suicídio. O estigma presente na sociedade também se reflete nos profissionais de saúde responsáveis por esse atendimento.

E MAIS…

A dor da perda pode levar ao suicídio também

O suicídio é considerado morte violenta e causa imenso sofrimento aos enlutados. Vamos destacar algumas das especificidades que tornam o luto por suicídio mais complicado.

– Culpa

No caso do suicídio, embora se saiba que o ato de se matar é de responsabilidade da pessoa que o realiza, familiares e amigos se sentem culpados por não terem percebido os sinais, ou por se sentirem responsáveis pelo sofrimento, que pode ter levado à morte. Essa culpa aumenta o sofrimento presente pela perda da pessoa amada; a falta e a culpa se somam.

– Morte violenta, corpo mutilado

O suicídio se enquadra na categoria de morte escancarada, a morte violenta, abrupta, com dificuldade de proteção (Kovács, 2003). Esse sofrimento pode aumentar quando é o enlutado que encontra o corpo, ou precisa reconhecê-lo no Instituto Médico Legal, experiência sempre traumática.

– Perda invertida

Ocorrem mortes por suicídios em perdas invertidas. Pais que perdem filhos e avós que perdem netos. Considera-se que perdas de filhos e netos são das perdas mais dolorosas, embora não haja termômetro para medir dor. Então, somam-se as dores do suicídio e das perdas invertidas.

– Luto não reconhecido

Há certas situações em que o luto não é reconhecido. O suicídio é uma dessas situações, por ser uma perda estigmatizada, sendo atribuída culpa ao enlutado por não ter percebido os sinais de alerta e dessa forma impedir o suicídio, ou por ser considerado o responsável pelo ato. São situações que comprometem o processo de elaboração da perda, porque o enlutado, nesses casos, não recebe acolhida e cuidados.

Todas essas situações levam a um alto risco de adoecimento físico e psíquico de enlutados por suicídio, inclusive a possibilidade de se matar. A dor da perda pode ser tão intensa que se busca acabar com o sofrimento pelo suicídio. É importante estar atento a essa possibilidade.

Referências
Fukumitsu, KO (2018). Suicídio, luto e posvenção. In: Fukumitsu, KO (org.) Vida, morte e luto. Atualidades brasileiras. São Paulo: Summus, 216-231
Kovács, MJ (2003). Educação para a morte. Temas e reflexões. São Paulo: Casa do Psicólogo.
Kovács, MJ. (2013). Revisão crítica sobre conflitos éticos envolvidos na situação de suicídio.Psicol. teor. prat. v. 15, n. 3, 69-82.
Menninger, K. (1965) Eros e Thanatos. O homem contra si próprio. São Paulo: Ibrasa.
Moreira, V, Cruz, AVH, Vasconcelos, LB. (2005). O caso Ellen West de Binswanger: fenomenologia clínica de uma existência inautêntica. Rev. Mal-Estar Subj. v.5, 382-396
Shneidman, ES. (1993) Suicide as Psychache: A clinical approach to self-destructive behavior. London: Jason Aronson.
Shneidman, ES.; Farberow, N. (1959) – Suicide and death. In: Feifel, H. (Edit.) – Meanings of death. New York: Mc Graw Hill.
NOTA DE RODAPÉ
Tema apresentado por Maria Julia Kovacs na mesa Herdeiros do Suicídio, durante o II Simpósio Bienal SBPSP – Fronteiras da Psicanálise: a clínica em movimento, realizado pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, em 2020.